A graça pode ser resistida. Entenda!
Você já se perguntou se Deus nos salva sem que a gente faça nada? Ou se é possível resistir à graça de Deus? Essas perguntas não são novas; há séculos, católicos e protestantes discutem como acontece a salvação e qual é o papel da graça e da nossa liberdade nesse processo.
Muitas pessoas têm dúvidas sinceras e, por falta de clareza, acabam caindo em erros que a Igreja já corrigiu há muito tempo. Algumas pensam que, para sermos salvos, basta fazermos boas obras, como se fôssemos capazes de alcançar o céu apenas com esforço humano. Esse erro é chamado de pelagianismo. Outras acham que não precisa fazer nada porque Deus já decidiu tudo e só nos resta aceitar, como se fôssemos marionetes. Esse erro é conhecido como duetismo. A verdade da fé católica está no meio desses dois extremos.
Deus agiu primeiro com sua graça, mas ele quer a nossa resposta livre. A Igreja ensina que Deus, em seu amor, sempre dá o primeiro passo. Ele oferece a graça que desperta o coração, fortalece a alma e ilumina a mente, mas essa graça não anula a nossa liberdade. Pelo contrário, ela convida, move e espera uma resposta livre e verdadeira. Deus nos chama, mas não nos obriga; ele quer filhos, não robôs. Por isso, é tão importante entender como funciona a relação entre a graça de Deus e a nossa cooperação.
Quando compreendemos isso, entendemos que a salvação é, ao mesmo tempo, um dom que recebemos e um caminho que trilhamos com a ajuda de Deus. É como uma dança onde Deus conduz e nós queremos dançar com ele.
O que é a graça de Deus?
Se é por meio dela que tudo começa, é necessário saber bem do que estamos falando. A graça não é uma energia mágica nem um sentimento vago; a graça é um dom gratuito que Deus dá para nos tornarmos seus filhos e nos conduz até a salvação. Gratuita quer dizer que não podemos comprar essa graça por conta própria; ela é um presente de Deus. É o amor dele derramado em nosso coração que nos transforma e dá força para viver como verdadeiros cristãos. Sem essa graça, seria impossível conhecer a Deus, amá-lo de verdade ou fazer o bem de forma sobrenatural. Ela é como uma luz que acende dentro de nós e nos ajuda a enxergar o caminho certo. A Igreja nos ensina que existem vários tipos de graça:
- Graça santificante: é aquela que recebemos no batismo e que nos torna filhos de Deus. Ela permanece em nós enquanto estivermos em estado de amizade com ele, ou seja, sem pecado mortal.
- Graça atual: é aquela ajuda que Deus nos dá em momentos concretos, para fazermos o bem, tomarmos uma decisão certa ou resistirmos a uma tentação.
- Graça sacramental: ligada aos sacramentos, que fortalece a alma de modo especial.
- Graças carismáticas: dons particulares dados a algumas pessoas para o bem de toda a Igreja.
Tudo isso mostra que é sempre Deus quem toma a iniciativa. Como diz a carta de São Paulo aos Efésios 2,8: “É pela graça que sois salvos, mediante a fé, e isso não vem de vós; é dom de Deus.” (Ef 2,8). Ele nos oferece o caminho, nos dá força, mas espera que caminhemos com ele. A graça, portanto, não é algo distante; no nosso dia a dia, nas pequenas escolhas e nas grandes decisões, ela está naquele arrependimento que sentimos, naquela força inesperada para perdoar, naquela paz depois das confissões. Quanto mais conhecemos essa graça, mais aprendemos a acolher e a não deixar passar em vão.
Se a graça de Deus é um dom gratuito, a salvação é um dom gratuito, mas requer resposta. Isso não quer dizer que o ser humano não tem nenhuma participação; Deus não a impõe, ele espera a nossa resposta livre. A graça vem primeiro, isso é certo, mas somos chamados a dizer sim, a cooperar com essa graça que nos transforma e nos conduz até ele. A Igreja ensina que tudo começa com a chamada graça preveniente, ou seja, aquela que vem antes de qualquer mérito nosso. É Deus quem nos toca primeiro, quem desperta o coração e semeia o desejo do bem e da liberdade.
“Trabalhai na nossa salvação com temor e tremor, pois é Deus quem realiza em vós tanto o querer como o fazer, segundo seu desígnio de amor.” (Fl 2,12-13). Ou seja, é Deus quem age, mas ele quer a nossa cooperação. Isso acontece pela fé e pela caridade. A fé é o primeiro passo de resposta: acreditar em Deus, confiar em sua palavra, aderir a ele com todo o coração. Mas a fé precisa ser viva, e isso só acontece em obras de amor. Por isso, a caridade, o amor vivido concretamente, é parte essencial da nossa graça. Crer sem amar não é crer de verdade. O Concílio de Trento, no século XVI, explicou isso com grande clareza, especialmente na 6ª sessão. Ele declarou que os homens são justificados gratuitamente pela graça de Deus, mas que essa justificação exige que o homem não resista à graça e que, pela sua livre vontade e escolha. O Concílio de Trento também afirmou que somos cooperadores de Deus e que a nossa vontade, movida e sustentada pela graça, colabora para a nossa própria salvação. Portanto, não basta dizer “Deus já fez tudo e não preciso fazer nada”; isso seria negar a nossa liberdade e o valor do amor. Também não podemos dizer “eu conquisto a salvação com meus próprios méritos”; isso seria orgulho e desprezo pela graça. A verdade católica está no equilíbrio: Deus age primeiro, mas espera a nossa resposta. Ele oferece o dom, mas quer que o recebamos com o coração aberto e com a vida transformada.
Se Deus nos dá a graça, ele espera nossa resposta. Surge então uma questão importante: é possível dizer “não” a essa graça? A resposta é sim, a graça de Deus não nos obriga, não anula nossa liberdade. Podemos resistir, rejeitar ou ignorar. Infelizmente, isso acontece mais do que imaginamos. A própria liberdade mostra, ao longo da história da salvação, que muitas pessoas resistiram ao chamado de Deus. No livro dos Atos 7,51, São Estevão diz aos judeus: “Vós sempre resistis ao Espírito Santo.” Eles ouviram a palavra, viram os sinais, mas fecharam o coração. Não foi falta de graça, foi resistência livre. Outros exemplos ilustram isso: Adão e Eva, mesmo vivendo em amizade com Deus, escolheram desobedecer. Outro exemplo é o jovem rico, que recebeu o olhar de Deus e o amor de Jesus, mas foi embora triste porque não quis abrir mão de suas riquezas. Judas Iscariotes andou junto de Jesus, mas escolheu recusar a misericórdia. Em todos esses casos, a graça estava presente, mas foi resistida. O Catecismo da Igreja Católica ensina claramente: a graça não força a liberdade. Deus respeita o coração humano; ele chama, atrai, ilumina, mas não invade. Ele bate à porta, mas não arromba. E é por isso que nossa resposta tem valor, porque é livre. Se é verdade que podemos resistir à graça, é porque Deus nos criou com liberdade. Ele nos fez capazes de escolher entre o bem e o mal, entre acolher o seu amor ou rejeitá-lo. A Igreja sempre ensinou que o livre-arbítrio é parte essencial da dignidade humana, diferente de algumas ideias deterministas que dizem que tudo já está decidido e que nossas escolhas não importam. A Igreja diz e afirma com clareza que Deus quer a salvação de todos, mas cada um como está em (Tm 2,4): “Deus quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade.” A graça de Deus nunca age contra a nossa liberdade; pelo contrário, ela ilumina, fortalece e orienta para o bem. Quando Deus nos atrai, ele não nos controla como se fôssemos robôs; ele nos convida, inspira, nos sustenta, mas espera uma resposta livre. A salvação é, ao mesmo tempo, dom e resposta; é uma colaboração entre a graça de Deus e a liberdade humana. Como ensinam os santos doutores: “Deus age em nós sem nos anular.” Ele age em nós com a nossa vontade, não sem ela. E é justamente isso que torna a resposta humana tão bela: quando dizemos “sim” a Deus, cooperamos com a sua vontade, estamos usando nossa liberdade de forma mais elevada. A graça não destrói nossa liberdade; ela cura, eleva e a conduz para seu verdadeiro fim, que é o amor. E quanto mais vivemos na graça, mais livres nos tornamos, livres do pecado, do egoísmo, das falsas promessas do mundo. Se a graça de Deus age e não anula nossa liberdade, então nossas escolhas, nossas obras e até mesmo nosso sacrifício podem ter valor diante de Deus. Mas aqui é importante ajustarmos bem o nosso olhar para entender o que a Igreja quer dizer quando fala de mérito e cooperação na vida cristã. O Catecismo da Igreja Católica diz que o mérito do homem diante de Deus nasce da graça, ou seja, tudo é um dom que ele mesmo tornou possível (CIC 2068-2074). Na lógica do mundo, mérito significa ganhar algo ou ganhar pontos por mérito pessoal, mas diante de Deus, mérito não é isso. Ninguém pode, por si só, exigir algo de Deus como se ele nos desse recompensa. A verdade é que todo bem que fazemos só é possível porque a graça de Deus já está agindo em nós. Quando cooperamos com liberdade, amor e fidelidade, Deus, com sua bondade, escolhe nos associar à sua obra de salvação. Por isso, quando falamos de mérito na vida cristã, estamos falando de uma resposta fiel que Deus colocou em nós. É como se Deus colocasse a semente e nos desse a terra, água e o sol, e quando o fruto aparece, ele se alegra conosco por cuidar da plantação. Tudo é graça, mas nossa cooperação é verdadeira e Deus a leva a sério. O mérito cristão não é orgulho, mas gratidão; é reconhecer que fomos capacitados por Deus a fazer o bem e que, ao fazermos o bem, estamos participando da sua vontade. Jesus mesmo prometeu recompensas àqueles que, por amor a ele, derem um copo de água ao irmão, não por merecimento no sentido humano, mas porque Deus quis assim; ele ama recompensar o amor.
Para entender melhor o que significa cooperar com a graça de Deus, podemos olhar para exemplos concretos de pessoas que viveram essa sinergia de Deus e a liberdade humana. Um exemplo poderoso é a conversão de Santo Agostinho. No início de sua vida, ele estava afastado de Deus, buscando satisfazer seus próprios desejos, mas em um momento de graça, ele ouviu a voz de Deus que o chamava à conversão. No famoso episódio, ele ouve uma criança dizendo “toma e lê”. Ao abrir as Escrituras, ele encontra o chamado de Deus para mudar de vida. Agostinho não foi forçado; ele respondeu livremente a essa graça e, ao fazer isso, transformou-se em um dos maiores santos da Igreja. Maria, a mãe de Jesus, é um exemplo sublime de cooperação com a graça. No evangelho de São Lucas 1,38, Maria responde ao anjo: “Eis-me aqui, a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra.” Ela, uma jovem simples, foi chamada para ser a mãe de Deus, e sua resposta foi um sim total a Deus, sem reservas, sem hesitações. Maria não foi passiva; sua liberdade estava totalmente em harmonia com a graça que recebia, e por isso ela é o modelo perfeito de cooperação com a graça divina.
Mas a cooperação da graça não está restrita a figuras bíblicas. A vida dos santos ao longo da história da Igreja nos dá exemplos concretos de como a graça de Deus age em nós, mas precisa da nossa resposta livre. São Francisco de Assis respondeu ao chamado de Deus, deixando sua vida de riqueza e status para viver a pobreza e a humildade. Santa Teresa d’Ávila, com sua profunda vida de oração e serviço, foi uma mulher livre que cooperou com a graça de Deus e enriqueceu a vida espiritual da Igreja.

Agora, a pergunta é: como você tem respondido à graça de Deus em sua vida?
Cada dia é uma nova oportunidade de dizer sim ao que ele nos pede, seja no pequeno ato de bondade, na oração, no perdão ou na entrega de nossas dificuldades. Deus continua a nos chamar, mas a resposta precisa ser nossa, livre e fiel. Nossa resposta à graça de Deus não pode ser algo pontual, mas um caminho contínuo de conversão e santidade.
Ao dizer “sim”, cooperamos com a graça que Deus derrama em nós, permitindo que ele nos conduza à plenitude da salvação.
Por Flavio Alexandre – Consagrado da Comunidade Fidelidade